O SAGRADO NAS CULTURAS INDÍGENAS
Por Benedito Prezia*
Este estudo mostra a dimensão religiosa dos indígenas do Brasil, nas suas mais diversas
etnias, privilegiando os povos Tupi e Guarani, pois foram eles os que mais marcaram as
práticas religiosas populares do povo brasileiro. Tenta mostrar também o desafio para os
cristãos em conhecer essa dimensão nas populações indígenas, em vista do diálogo
inter-religioso e da prática macro-ecumênica, tão urgente para as Igrejas cristãs.
"Há cinco séculos enfrentamos a evangelização no Brasil. Dentro desses séculos, só vimos
a dominação, a exploração e o extermínio do nosso povo e a perda da nossa identidade
cultural indígena. Para nós, a Boa Nova já existe dentro das nossas convivências."
Esse brado, em defesa da cultura e religiosidade indígenas, foi lançado pela delegação de
povos nativos, presente ao V Congresso Missionário Latino-americano, COMLA-5, em Belo
Horizonte, em julho de 1995.
É também um desafio lançado às Igrejas cristãs, que muito pouco conhecem e respeitam
essas expressões religiosas.
Durante muito tempo falou-se em índio, como se fosse uma categoria única, biológica,
sem levar em conta a realidade cultural. Esse conceito foi uma criação colonial, baseada
num erro histórico, já que navegantes espanhóis, ao chegar nas Antilhas, acreditavam
ter chegado nas Índias.
Na realidade o que existe é uma variedade enorme de povos com história e culturas
diferentes, vivendo nesse continente há mais de 20 mil anos.
Ao longo da história do Brasil, os indígenas, isto é, os nativos, sempre foram definidos
pela negação: não têm escrita, não têm religião — "pois não têm templos nem ídolos" ,
como dizia um jesuíta na época colonial –, não têm lei, não têm governo e não têm
história.
O que antes era visto como ausência ou limitação, vê-se que é simplesmente uma
maneira diversa de ser. Não são piores e nem melhores do que nós. São simplesmente
diferentes.
Apesar da diversidade cultural, nesse texto vamos abordar as características religiosas
que lhes são comuns ou encontradas em muitos povos do Brasil, privilegiando de certa
forma os povos Tupinambá e Guarani, que foram os que mais marcaram nossa cultura
brasileira e nossa religiosidade popular, por terem sido os povos com os quais convivemos
por mais tempo.
1. O PROFUNDO SENTIDO DE DEUS
A idéia de Deus perpassa todas as religiões indígenas. Muitos desses povos têm a noção
de um Deus criador, mas de um Deus que cria e, em seguida, se afasta, intervindo no
mundo através de entidades espirituais ou heróis civilizadores, isto é, humanos com
grandes poderes. Outras vezes esse herói é também o ancestral de um povo.
Para os Tupinambá, povo que ocupou grandes áreas da costa brasileira, Deus criador
era chamado de Monã, que significa o ancião. Criou o céu, a terra, os homens e tudo
o que existe. Devido à maldade dos homens destruiu essa primeira terra pelo fogo.
Houve apenas um sobrevivente, Maíra Mona, que pediu que a restaurasse. Uma grande
chuva apagou o incêndio, surgindo aí uma nova terra. Um conflito entre dois irmãos —
Tamoindaré e Arikuté, descendentes de Maíra-Monã –, desencadeou uma nova
catástrofe, um dilúvio, que destruiu novamente a terra. Salvaram-se apenas esses
dois irmãos, com suas esposas, porque conseguiram subir em cima de uma palmeira e
de um jenipapeiro. De Tamoindaré descendem os Taupinambá e de Arikuté, descendem
os Temiminó e isso explica porque até hoje são inimigos.
Os Guarani chamam a Deus pelo nome de Nhanderu, o nosso primeiro pai. Foi ele quem
dispersou as trevas primordiais com a luz de sua sabedoria. Criou o mundo, colocando-o
sobre duas traves cruzadas, que por sua vez são apoiadas sobre quatro palmeiras.
No dia em que essas palmeiras desabarem, será o fim do mundo material.
O presente mundo é apenas uma cópia ou sombra do verdadeiro mundo, que fica no
Além. Por isso todo empenho dos Guarani é alcançar o Yvy marã' ei, a Terra sem Mal,
onde as pessoas não envelhecem, onde não é preciso trabalhar, onde a caça já vem
aos pés do caçador e onde não há sofrimento e nem morte.
Muitas outras sociedades indígenas não possuem a idéia de um Deus criador, como é
o caso do povo Xavante e dos povos de língua jê. Seus mitos de origem começam com
um mundo já criado, havendo demiurgos que vão amparar e proteger os humanos.
Entre outros povos há um mundo povoado por diferentes categorias de seres, com
poderes muito diferenciados, que trazem benefícios e malefícios aos humanos.
2. O SAGRADO E O PROFANO
No universo indígena não há separação entre o sagrado e o profano. Tudo é sagrado:
a natureza, a vida e a morte.
A doença não é vista como algo físico, corpóreo, mas conseqüência de um malefício
espiritual praticado por alguém. É o que chamamos de feitiço e que pode ser controlado
pelo pajé. O feitiço existiu em todos os povos da antiguidade e ainda existe em muitas
culturas. Entre os Guarani é chamado de mohã-vai.
Pode ser provocado por diversas maneiras como restos de comida, objetos pessoais ou
elementos ou adornos do corpo, como um fio de cabelo ou uma peça de roupa. Há casos
em que a última pessoa que tenha visitado um doente e este venha a falecer, possa ser
acusada de provocar aquela morte.
Para combater o feitiço há rezas fortes, que entre os Guarani são chamadas de nheengaraí.
Quando um pajé não consegue tirar um feitiço ou evitar a morte de alguém, é considerado incompetente, podendo mesmo ser responsabilizado por aquela morte. Nesse caso ele
precisa mudar de aldeia para não ser perseguido ou desmoralizado ou até morto.
Essa união entre o sagrado e o profano faz com que todas as ações precisam ser iniciadas
com uma oração ou um sinal religioso. Por isso o Guarani reza antes de entrar na mata
para caçar; reza para pedir a bênção dos grãos, que serão plantados; reza para
abençoar a erva mate, usada no chimarrão; reza antes de viajar, reza antes de fazer
uma fala, pedindo que Deus o inspire para dizer apenas as coisas boas; reza enfim sempre
e em todo lugar.
Para os Guarani não havia canto profano. Todo canto era sagrado, fruto de uma inspiração
divina, recebido geralmente através do sonho. Hoje, com a comercialização da cultura,
começaram a fazer cantos profanos, como os gravados em CDs para serem comercializados,
não sem protestos dos mais velhos.
O brasileiro deve ter herdado dos indígenas esse hábito de colocar o nome de Deus e de
Jesus em muitos locais, ditos "profanos", como na frente ou no pára-choque do caminhão,
em muros e out-door. Não é de se admirar que após uma vitória numa partida internacional
de futebol, vamos presenciar jogadores brasileiros, de joelhos, de mãos dadas, rezarem o
pai-nosso. Ou dizer com muita freqüência "se Deus quiser", embora seja também uma
recomendação do Alcorão, trazida por nossos antepassados portugueses.
3. A NATUREZA COMO LUGAR SAGRADO
Nas sociedades tradicionais a natureza é sempre vista com o olhar religioso. Os quéchuas
do Peru chamam a terra de mãe – pacha mama.
Os povos indígenas da América do Norte também tiveram essa percepção. Muito
conhecida e antológica é a carta que o cacique Seatle enviou ao presidente dos Estados
Unidos, explicando porque se recusava a vender parte de suas terras:
"Cada pedaço dessa terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro,
cada punhado de areia nas praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto
a zumbir são sagrados na memória de meu povo. Somos parte dessa terra e ela faz parte
de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são
nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, os potros com seu
corpo quente e o homem, enfim todos pertencem à mesma família.Essa água brilhante que
corre pelos riachos e rios não é apenas água, mas é o sangue de nossos antepassados.
O murmúrio das águas é a voz de nossos ancestrais. Os rios são nossos irmãos e saciam
nossa sede".
Entre os povos indígena do Brasil há também esse respeito à terra, não só como chão
sagrado, que alimenta e dá vida, mas também como morada dos espíritos. Davi Kopenawa,
do povo Yanomami, afirma que dentro das serras moram os Xapori, Hekura, os espíritos
da natureza. E entre as serras têm os caminhos dos Xapori. Ninguém vê, só pajé conhce
essa ligações. As serras são lugares sagrados, lugares onde nasceram os pirmeiros
Yanomami, onde suas cinzas foram enterradas. Nossos velhos deixaram que as serras
sejam respeitadas, não queremos que sejam destruídas. Queremos que estes lugares
sejam preservados para não acabar com nossa história e com nossos espíritos.
Por considerarem os rios igualmente morada dos espíritos, evitam urinar em suas águas.
Muitas são as entidades que protegem a mata e os animais, sendo chamados de donos da
mata, como é o Curupira, ou donos dos animais. Cada espécie tem uma entidade protetora.
Estes são os guardiões, que punem os que faltam de respeito à natureza e os caçadores
que matam fêmeas com filhotes ou que caçam simplesmente por prazer.
Essa relação de amizade quase humana com os elementos da natureza encontramos entre
o povo Mynky, que vive no oeste do Mato Grosso.
Elizabeth Rondon Amarante, que vive com eles há mais de 20 anos, deixou-nos esse belo
relato:
"Wajakuxi parece não ter pressa. Acerta uma machadada e pára. Alisa o tronco, contempla
lá em cima a copa da árvore e fala sozinho. Sozinho não: conversa com a árvore, e como
que pede perdão de a estar matando. Mais dois golpes e torna a acariciar e torna a
contemplar e torna a conversar. Sua atitude se explica: a mata é sua morada e cada árvore
tornou-se para ele um ser amigo. Derruba-se por necessidade, porque o plantio da roça é subsistência do povo".
E continua a descrever esse povo:
O Mynky é um povo caçador.(...) Caçar é seu trabalho, é sua missão de marido e de pai.
Caçar é sempre um prazer, uma festa e muitas vezes um ritual. (...) Ele é dono desse
universo, o dono que se serve da natureza, mas não depreda; o dono que mata o animal,
mas não esperdiça; o dono que derruba a árvore, mas não devasta a floresta.
E como diz Viveiros de Castro, ao contrário de povos de outros continentes, os povos
indígenas americanos apresentam religiões muito próximas da natureza e muito austeras,
do ponto de vista material. "São muito mais religiões da palavra, da experiência onírica
[do sonho], do transe. Nesse sentido são muito mais místicas e muito menos materialistas".
4. CULTURA DA PARTILHA E DO ACOLHIMENTO
A generosidade é a marca da cultura indígena. Para esses povos não há propriedade
particular. O que é de um é de todos.
Os europeus, ao chegarem aqui, ficaram surpresos com essa realidade. Hans Staden,
alemão que viveu vários meses entre os Tupinambá como prisioneiro, na metade do século
16, assim os descreveu: "Não existe entre eles propriedade particular, nem conhecem
dinheiro. Seu tesouro são penas de pássaros. Quem as tem, é rico e quem tem cristais
para [enfeitar] os lábios, é dos mais ricos."
Não havia e, ainda não há na maior parte das aldeias, diferença social, isto é, pobres e
ricos. A disparidade social existente no mundo ocidental muito chocou os Tupinambá, que
estiveram na França, no início do século 17, e que serviu de reflexão filosófica para o
pensador francês Montaigne: "Observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando
as comodidades da vida, enquanto metades [uma grande parte] de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros".
Para evitar acumulação da propriedade, certos povos criaram rituais que realizam a
redistribuição dos bens, acumulados ao logo do tempo, como ocorre ainda hoje entre os
Tapirapé do Mato Grosso. É o rito do kaawin-ô, realizado a cada dois ou três anos.
Prepara-se uma grande quantidade de cauim, sendo que parte é levada numa cuia para
que os adultos que vão participar possam tomar um pouco dele. Ao provar a bebida, a
pessoa cospe um pouco no chão, mostrando que aceita participar desse ritual. Nesse
momento as pessoas que acompanham o grupo cerimonial têm o direito de pegar o que
desejarem da casa daquela pessoa. "Há ao mesmo tempo desprendimento e audácia, que
podem causar admiração e medo" comenta Irmã Odila, que vive há anos com eles.
Em pouco tempo "cama, colchão, cadeira, fogão a gás, pasta de urucum, arara, galinha,
tudo muda de proprietário em apenas uma manhã", num grande movimento redistributivo".
Entre os Bororo os bens da pessoa desaparecem no momento da morte. Um dos elementos
do ritual consiste em queimar os pertences do morto, destruindo assim a idéia de herança.
O que se transmite são os valores morais e espirituais.
Entre outros povos esse processo é feito de forma mais espontânea e em algumas
comunidades praticamente não existe a noção de propriedade particular, tudo podendo
ser de todos.
Um outro aspecto é o acolhimento. Nessas comunidades a família não é restrita apenas
ao pai e à mãe, como em nossa sociedade, mas é formada pela família extensa, que inclui
os avós, os tios maternos e paternos. Se faltar um dos membros do casal — o pai ou a
mãe, devido à morte ou separação –, a criança não fica desamparada, pois é acolhida por
outra pessoa da família, como o tio ou o avô. Isso explica porque nas comunidades
indígenas não existe criança abandonada ou menor carente.
5. UM CULTO FESTIVO
Ao contrário de nossa cultura ocidental, onde a oração geralmente é um ato pessoal e
muitas vezes silencioso, nas culturas indígenas o culto é feito de forma coletiva, com
cantos e danças. A dança sempre é ritual e religiosa.
Certa vez, na aldeia Tapirapé, um indígena ao ver uma das Irmãs de Foucauld, que vivia
entre eles, rezando na capela, sozinha e de cabeça baixa, perguntou mais tarde porque
ela estava triste. Assim os rituais são sempre festivos, e celebrando com abundância de
comida e bebida.
Como diz o antropólogo padre Bartomeu Melià, "a festa guarani pode ser considerada
como um sacramento, segundo o qual os produtos materiais que serão consumidos são
benzidos e rezados no canto-dança religioso". E continua comentando: "A festa guarani
não é apenas um cerimonial, mas a metáfora concreta de uma economia de reciprocidade
vivida religiosamente".
Por isso pode-se medir a vitalidade de uma aldeia pela freqüência de suas festas. A falta
de festa, de celebrações, é sinal de que a comunidade está em crise, ou por falta de
rezadores e líderes, por desestruturação ou por falta de comida.
Mesmo quando o ritual é mais triste, como na festa do Kiki — ritual fúnebre dos Kaingang
de Santa Catarina –, termina sempre com uma grande celebração, com muita bebida e
dança ao redor das fogueiras.
Esse traço festivo encontra-se no catolicismo popular, onde as comemorações religiosas
são marcadamente festas profanas, sendo que algumas delas entraram para o folclore
brasileiro, como as festas juninas. Nelas vamos encontrar fortes traços não só da festa
do milho, tradicional nas culturas tupi e guarani, como também na festa kaingang do Kiki,
onde há a fogueira e a bebida quente.
Não sem razão José Honório Rodrigues escreveu, ao comentar sobre a cultura brasileira no
início do século 19, que "a religião perdeu, entre nós, o ar sinistro das práticas peninsulares,
e ganhou alegria, adaptando-se ao povo, às populações mestiças, amigas do batuque, do foguetório, dos repiques de sinos e alheias às sutilezas do dogma". E isso se deve muito às influências culturais indígenas e africanas.
6. POVOS TOLERANTES E SEM PROSELITISMO
Os indígenas são povos de religiões sem dogmas. O importante para eles não é um código
escrito e imutável, mas as tradições orais baseadas em mitos e nas falas dos mais velhos.
As referências mais importantes são a tradição do grupo étnico e a inspiração divina, que
vão orientar a conduta pessoal e comunitária.
Os povos indígenas são tolerante, agregantes e não missionários. Esse traço vamos
encontrar, sobretudo, na umbanda — a mais brasileira das religiões –, justamente por
esse caráter sincrético, onde encontramos elementos católicos, africanos, indígenas,
sertanejos e espíritas.
Essa característica encontra-se também na religião popular brasileira, não só entre os
católicos, que são bastante sincréticos na sua prática religiosa, como também entre os pentecostais. Seguramente essa é uma das explicações para a proliferação de Igrejas
pentecostais, marcadas por uma religiosidade festiva e emocional, centrada no milagre,
no exorcismo e na garantia da salvação.
A rigidez dogmática de algumas Igrejas protestantes foi compensada no pentecostalismo
pela possibilidade de se criar novas Igrejas, surgidas a partir da visão particular do pastor,
que encarna bem a figura do pajé indígena. É a concretização de uma espécie de Igreja
doméstica, com um culto familiar.
Uma coisa que diferencia a tradição indígena das igrejas evangélicas é o extremado
proselitismo dessas últimas, que contrasta com o profundo respeito que o indígena tem
pela opção individual de cada um.
Para os indígenas a noção de salvação — que para eles é alcançar a Outra Terra, a Terra
sem Mal – está muito mais ligada à pertença da pessoa àquele determinado grupo étnico e
ao cumprimento de suas normas, do que à adesão à uma doutrina ou à uma perfeição
pessoal, como no caso de várias religiões ocidentais.
7. O PAJÉ E O XAMANISMO
O pajé, nome de origem tupi, é o mesmo que xamã, termo usado na antropologia, originário
de uma língua siberiana. Ele é o intermediador entre o mundo material, em que vivemos e
o mundo espiritual dos espíritos. Exerce não só a função de sacerdote como também a de
médico. Além de ter o segredo das plantas, vai atuar nas causas das doenças, descobrindo
as forças espirituais que a desencadearam.
Durante muito tempo o xamã foi visto como uma pessoa ligada a cultos primitivos, "arcaicos"
e que seriam abandonados à medida que as pessoas tivessem acesso às culturas
"superiores".
Tal situação não ocorreu, pois o xamanismo tem se desenvolvido muito nos países de alta tecnologia, onde as pessoas estão buscando nas religiões ligadas à natureza respostas aos problemas da vida moderna.
No xamanismo indígena, o pajé não é uma função hereditária e nem é fruto de uma opção
pessoal, embora entre alguns povos da Amazônia, como os Araweté, do Pará, todos são potencialmente pajés.
Mas na maioria dos povos indígenas, a pessoa é escolhida por entidades espirituais,
manifestadas, sobretudo, por sonhos ou pela capacidade de previsões futuras. Entre os
Pankararu, de Pernambuco, esse sinal é dada por uma semente que aparece à pessoa,
dizendo que ela poderá assumir a função de pajé, quando a pessoa, vestida com roupa
ritual participa de determinadas danças religiosas.
Uma vez escolhida, caso a aceite, essa pessoa passa por um período de preparação com
outros pajés, para aprender rituais e o contato com os espíritos.
Basicamente compete ao pajé curar as pessoas, predizer o futuro, expulsar espíritos maus, comunicar-se com os espíritos e compor cantos.
O transe na pajelança pode ocorrer com a ingestão de substâncias alucinógenas.
O tabaco, usado no cachimbo é importante elemento do ritual e serve para a cura e
como purificador do ambiente, como ocorre com os Guarani Mbyá.
Nessa interpenetração entre os vários mundos, muitas vezes o pajé pode assumir a
figura de um animal, como relata Orlando Villas Boas, o que facilita seu contato com o
mundo espiritual.
Pelo poder que têm, os pajés são temidos e respeitados. Como escreveu Frei Claude
d'Abbeville, no século 17, os índios entretanto apreciam os pajés; tratam-nos bem em
qualquer lugar que se encontrem. São honrosamente mencionados em seus cantos e
bem acolhidos nas danças e cauinagem [festas com cauim] e em todas as cerimônias,
pois todos acreditam que as coisas correm bem quando são amigos dos pajés e, ao
contrário, muito mal, se não os agradam.
Não sem razão Gunter Kroemer afirma que "os povos indígenas resgataram o aspecto
coletivo da magia", que nosso mundo racionalista havia perdido, vindo daí o grande
interesse atual pelo xamanismo".
Interferindo no mundo material, sobretudo na natureza, podemos dizer que o xamanismo
possui também um papel social e ecológico, influenciando a comunidade na preservação
da natureza, como observa o citado autor.
Além dos pajés-auxiliares, em algumas culturas as mulheres poder exercer essa função,
tendo persistido essa figura em nossas benzedeiras.
Entre os povos tupis havia também o pajé andarilho, chamado karaíba, espécie de missionário ambulante, que circulava pelas várias aldeias, exortando e fazendo curas.
Esse traço do pajé ambulante permaneceu, sobretudo no Nordeste, na figura dos beatos,
que através de uma vida penitente e pobre, que vão de povoado em povoado reconstruindo oratórios, recitando o terço e ladainhas e até aglutinando pessoas, em volta de si, num
projeto de vida comunitária, como foi o caso do Beato Lourenço, do Caldeirão, no Ceará,
na época do pe. Cícero, ou os líderes político-comunitários, como Antônio Conselheiro,
na Bahia, ou o beato João Maria, em Santa Catarina, no começo do século passado.
8. AS ALMAS E A VIDA DEPOIS DA MORTE
O mundo espiritual é muito presente entre os povos indígenas, pois é marcado pela busca
de uma terra boa, um mundo onde não haverá sofrimento e nem morte.
Os povos tupis, em geral, e os Guarani, em particular, acreditam em três almas: a espiritual, responsável pelas boas inclinações; a animal, da qual derivam o temperamento e as más
inclinações; e a sombra.
Quando a pessoa morre, a alma espiritual inicia a caminhada para a Terra sem Mal,
enquanto a alma material fica vagando perto da aldeia ou no cemitério, onde foi enterrada,
até que o corpo se decomponha. Por isso muitos Guarani evitam passar por esses lugares.
A morte violenta ou acidental é uma situação difícil para muitos desses povos, pois é uma
situação em que não houve tempo para o falecido se preparar. Por isso sua alma pode
interferir negativamente junto à comunidade. Isso também se vê na cultura brasileira,
onde o local, onde alguém morreu de forma violenta ou num acidente, é marcado com
uma cruz.
O culto das almas, que têm tanto espaço na religião popular, encontra aí uma de suas
raízes. O sonho é o momento em que a alma sai do corpo, indo para o Além, podendo
entrar em contato com outras pessoas e outros lugares. A doença é a saída temporária
da alma, sendo que a morte é a saída definitiva.
A busca do paraíso, chamado de Terra de Maíra ou Terra sem Mal, foi sempre muito forte
entre os povos Tupi, levando-os a constantes migrações, sobretudo em épocas de crise
social.
Alguns o situam a Oeste, depois das altas montanhas (os Andes), o que levou um grande
grupo Tupi a migrar para o altiplano peruano, tendo alguns sobreviventes dessa longa
peregrinação chegado à cidade de Quito, no Equador, no final do século 16.
Mais comumente é situado a Leste, depois das grandes águas, isto é, depois do oceano.
Por isso os europeus, ao chegarem aqui, foram considerados pessoas divinas, vindas
desse mundo, recebendo nomes religiosos, como foi o caso dos franceses, chamados de
Maíra, e dos portugueses, de Karaíba.
Alguns indígenas aceitavam de bom grado embarcar para a Europa, acreditando estar indo
para essa terra, como se lè em relatos do século 16. A presença Tupi em todo o litoral
sudeste e nordeste, a partir do século 10, e a vinda dos Guarani em épocas recentes,
mostram que essa localização era muito presente.
Era uma terra de felicidades e de fartura e onde não havia sofrimento ou doença. "O
mantimento há de crescer por si, sem serem plantados, relata Anchieta, e as caças do
mato se lhe hão de vir a meter em casa." [41] E conclui o missionário: "As velhas se hão
de tornar moças e para isso fazem lavatórios de algumas ervas com que [se] lavam."
Para eles a vida presente era imperfeita e, de certa forma, má. Por isso todo o esforço do
ser humano devia ser em alcançar a outra terra, a morada de Maíra. Os pajés seriam os
únicos a entrar em vida. Segundo os Tupinambá, para lá vão apenas as almas dos valentes
e das mulheres que demonstrassem bravura na guerra ou que tivessem ajudado seus
maridos nos rituais de morte. Os medrosos, "que não lutaram para defender sua terra" não
poderiam entrar.
Seguramente essa idéia de paraíso esteja na raiz de muitos movimentos messiânicos nos
Brasil, como o de Antônio Conselheiro, na Bahia, o do Contestado, em Santa Catarina[43]
e no movimento pouco conhecido, ocorrido em Catulé, no nordeste de Minas Gerais.
A idéia de uma terra boa no Além domina também a religiosidade popular brasileira, haja
vista a quantidade de igrejas evangélicas que prometem a salvação imediata para seus
adeptos, chegando muitas anunciar a volta próxima de Cristo, numa visão milenarislista.
CONCLUSÃO
Podemos concluir esse breve estudo mostrando que esses ideais religiosos indígenas poderão
inspirar os sonhos de um mundo mais humano e mais espiritualizado, dando-nos esperança e despertando utopias. E com disse um dia, Dom Pedro Casaldáliga:
Vós sois nossa causa perdida salvadora!
Vós sois a necessária e urgente Utopia!
A nova inevitável esperança de todo um continente
Rogai por nossas vidas sem arco e sem estrelas!
Texto extraido da Revista Uniclar, São Paulo: Publicação da Faculdade Claretiano, Ano IX
– Numero 1, 2007. (Revista comemorativa dos 10 anos de Ciências da Religião)